.: estudo de personagem nº 02
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um blog, aqui. uma peça, atualmente em cartaz. um filme, em algum lugar do futuro. músicas e sentimentos, em toda parte.

terça-feira, 21 de abril de 2009

estudo de personagem nº 02

Eu não te conheci como costumam se conhecer os amantes que tem assim mais ou menos a nossa idade. Você não olhou para mim na luz incerta da pista de dança, eu não dancei te olhando fingindo que não te via, nossos olhares não se raptaram, nenhum de nós caminhou até o outro, nós não conversamos a conversa dos que se querem.

Eu não te sorri sorrisos interessados nem fiz meu corpo falar coisas que a boca geralmente cala. Eu não tentei ser charmoso e acreditar em uma troca sexual de energia, não tentei dizer as coisas certas, nem parecer interessante. Eu não elogiei sua beleza, ou sua inteligência ou seu senso de humor, ou seu carisma, ou seu charme, ou sua doçura ou nenhum dos seus tão evidentes predicados. Nem você os meus. Eu não peguei na sua mão nem te dei um primeiro beijo, nem um segundo, nem um terceiro. Eu não te dei meu telefone nem marcamos um outro encontro.

Nós não jogamos o jogo da sedução.

Eu não te mandei mensagens discretamente tomadas pelo primeiro encantamento, eu não te convidei para sair, nós não fomos ao cinema nem nos encontramos para um café. Não falamos sobre gostos gastronômicos, nem sensoriais, nem artísticos, nem emotivos. Não nos descobrimos ambos viciados em chocolate. Nós também não percebemos outros afetos e carinhos discretos e mútuos. Eu não te dei carona até sua casa do outro lado da cidade só tentando passar mais alguns minutos junto com você.

Nós não trocamos emails ambíguos e plenos de segundas e terceiras intenções. Nós não trocamos as palavras irresistíveis e ridículas das cartas de amor. Nós não intensificamos nossa convivência, nós não nos identificamos cada vez mais irremediavelmente, nós não quisemos cada vez mais a proximidade do outro.

Eu não projetei em você a minha carência nem a minha solidão, nem as minhas inseguranças. Eu não tentei acreditar que você era uma pessoa que combinava perfeitamente comigo. Eu não antevi nosso relacionamento, eu não fiz planos para um futuro que te incluía. Eu não imaginei as tardes que ficaríamos em casa vendo filmes e comendo chocolate. Eu não pensei nos lugares para os quais poderíamos viajar. Eu não me satisfiz com a idéia das peças e shows que veríamos juntos ou sequer das músicas que iríamos compartilhar.

Eu nunca te mandei uma música de amor.

Nós não avolumamos a troca de admirações conjuntas nem de paixões comuns. Nós não demos risada um do outro por motivos bobos, não nos achamos um casal bonito nos olhando abraçados no espelho, não tiramos fotos que eternizassem nossos sentimentos, não vivemos momentos prosaicamente inesquecíveis que jamais quereríamos apagar da memória, nós não quisemos ignorar outras presenças humanas para estarmos sozinhos num mundo sentimental só nosso.

Nós não inventamos apelidos ou termos vocabulares que nos fossem especiais. Não estabelecemos piadas internas, não falamos mal de quem não gostávamos, não nos demos quaisquer presentes criteriosa e amorosamente escolhidos. Não sentimos ciúmes um do outro, nem nos quisemos com exclusividade.

Nada disso nunca aconteceu entre nós.

*

No entanto, sabe por que eu fui me percebendo irremediavelmente apaixonado por você, ainda que sozinho? Eu também não. Mas se fosse supor, diria que essa convulsão que eu chego mesmo a sentir no corpo feito cólica, ao mesmo tempo que é um sentimento único meu, é também um mérito exclusivo da pessoa que você é. Um amor de mão única que existe tão somente em razão da capacidade do objeto amado de simplesmente despertá-lo. Como se com tantas pessoas desinteressantes no mundo, a presença de uma tão especial só pudesse gerar essa resposta, só pudesse ser retribuída com paixão.

E amor assim, tão de graça, tão sem esperança, tão imprevisto e que vive sem precisar de nada em troca, deve ser no fim das contas pelo menos um sentimento bom.

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